Shimanami Kaido – uma ciclovia no Japão

Virou mania… Aonde vou, procuro uma rota de bicicleta. Meu plano, dessa vez, era visitar o Japão – minha primeira vez na Ásia. Uma viagem solo em um país totalmente desconhecido por mim. 
Meu tempo em terras nipônicas não seria muito longo (um mês apenas). Havia muitos lugares para conhecer; então optei por escolher uma rota de bicicleta curta. 
Foi só pesquisar (no Google, claro) por “Japão de bicicleta” e a primeira rota sugerida foi a Shimanami Kaido, que em vários artigos aparece como “sonho dos ciclistas”, “rota incrível para percorrer no Japão”, “entre as mais belas do mundo”, “entre as 50 mais atraentes do mundo pela Epic Bike Rides of the World da Lonely Planet”, etc… Pensei: “Nossa, essa eu tenho que conhecer!”.
Descobri que a rota em questão , estava localizada exatamente na província de Hiroshima. Um lugar que eu havia programado visitar.
Não tive duvidas e decidi conferir se a rota fazia jus a todos os adjetivos que lhe havia sido conferidos

Mas afinal, pensei: o que a torna tão especial?

Talvez o fato de pedalar sobre o Mar Interior de Seto e atravessar sete magníficas pontes? Sim, a Shimanami Kaido é uma rota de 74 km que conecta as principais ilhas de Honshu e Shikoku. Ela liga seis ilhas menores espalhadas pelo Mar Interior de Seto através de pontes .
Ela começa em Honshu, na cidade de Onomichi. Atravessa , as ilhas de Mukaishima, Innoshima, Ikuchijima, Omishima, Hakatajima e Oshima. Terminando em Shikoku, na cidade de Imabari.
A rota foi inaugurada em 1999 e as pontes são modernas e monumentais.
É possível pedalar em cima do mar turbulento como um grande rio, pontilhado de ilhas. Com aldeias tranquilas, templos, campos cítricos , cooperativas agrícolas, industrias pesadas , estaleiros e escolas
Além do cenário, há algumas outras atrações no caminho entre Honshu e Shikoku. Na Ilha de Ikuchijima, por exemplo, há o Museu Hirayama. Um lugar dedicado a um dos pintores mais famosos do Japão, Hirayama Ikuo, que nasceu na ilha. Em cada ilha há uma atração a ser explorada.

Fotos que vi em minhas pesquisas – www.touzainanboku.com  www.jstyle.com.au ).

O Ponto de partida: Onomichi. 

Como eu disse, eu estava visitando vários lugares do Japão, seguindo de Tóquio para o sul do país. Decidi deixar Hiroshima para o final da viagem. Eu estava com passe de trem – o Japan Pass (obrigatório para quem quer explorar o país). Planejei, então, ir de trem de Kyoto a Fukuyama. Lá fiz um translado para o ponto partida.
 
Onomichi é uma cidade portuária montanhosa. Conhecida por seus templos históricos e vielas estreitas. Também famosa por por ser uma das duas cidades protagonistas de uma obra-prima do cinema. Tokyo Story, dirigido por Yasujirō Ozu ,que mostra a Onomichi dos anos 1950.
Onomichi vista do alto

a cidade  vista do alto

Senko-Ji

Senko-Ji

Outra peculiaridade por lá são os gatos aqui e ali. São tantos que a cidade tem até uma área chamada “beco dos gatos” e um museu. O museu é dedicado à Maneki-neko, a tradicional figura em forma de gato. Maneki-neko que traz sorte e saúde, de acordo com a cultura japonesa. E muitas estátuas referentes aos felinos.
Na cidade, há dois pontos de aluguel de bicicleta, localizados a cerca de 150 metros da estação de trem. Um fica em um estacionamento à beira-mar : o Shimanami Rental Bike e a loja Giant Onomichi.
A Giant Onomichi esta localizada em Onomichi U2. O lugar é um hotel-armazém reformado.
Na  cidade , a primeira coisa que fiz foi visitar as duas opções. Podendo , então me decidir e programar minha pedalada – aquela que agora era também o meu “sonho”.

A primeira: Shimanami Rental Bike 

Ela possui mais de uma dúzia de terminais espalhados ao longo do percurso de ciclismo. O aluguel é muito barato.
Uma taxa é cobrada e depois devolvida, a menos que se deixe a bicicleta em um terminal numa ilha diferente. São vários tipos de bicicletas disponíveis. Mas alguns dos terminais menores podem ter apenas uma seleção limitada.
Tandems e bicicletas de assistência elétrica estão disponíveis em alguns terminais. Porém, devem ser devolvidos ao terminal onde foram alugados. Reservas antecipadas podem ser feitas online, mas não são obrigatórias.
As bicicletas, na sua maioria, eram básicas, estilo a Caloi Ceci com cestinha, e manutenção duvidosa. Ideais para visitar a cidade, mas para cicloturismo não achei interessante.

Segui para a segunda opção,  a Loja da Giant , na Onomichi U2

A Loja da Giant, é uma instalação projetada especificamente para ciclistas. Oferece acomodação onde você pode até dormir com sua bicicleta. Há um restaurante, uma oficina e uma loja que aluga bicicletas. O aluguel é muito mais caro e tem apenas dois terminais: um na estação Onomichi e outro na estação Imabari. Várias bicicletas de alta qualidade e último modelo estão disponíveis por 4000 a 13000 ienes por dia.
As duas opções , permitem que o ciclista alugue a bicicleta em uma extremidade da rota e a deixe na outra extremidade. No no caso do sistema público – pode parar em qualquer lugar quando se cansar e apanhar um ônibus para o resto da viagem.

Alguns fatores como : a organização, o atendimento e a segurança, fizeram com que, apesar do custo, eu optasse pela Giant. Lá eu completei um formulário, li a respeito das normas e leis do ciclismo no Japão e apresentei passaporte. Depois paguei o aluguel com antecedência.

 
Dependendo do modelo de bicicleta , é necessário retornar com a ela (foi o meu caso). Em alguns casos ela pode ser deixada no ponto final da rota . Decidi que voltaria de ônibus e fiz a reserva na própria loja. Os ônibus são limitados, portanto, é imprescindível fazer a reserva. 
Por ser uma rota de curta distância, muitos ciclistas fazem em apenas um dia ou em poucas horas. Mas sem tempo suficiente para visitar os pontos interessantes nas ilhas.
Na minha opinião, uma rota é o que há nela e não apenas um trajeto entre os pontoa A a B. É poder usufruir das paisagens e do lugar. Então, aluguei a bicicleta por dois dias (queria mais). Tendo entendido as regras e com os mapas à mão, só me restava seguir.

Começando o percurso

Na Ponte de Onomichi, que se conecta à Ilha de Mukaishima, bicicletas são permitidas, mas não há Ciclovia. Fui alertada sobre o perigo de seguir por ela, devido ao intenso tráfego. Decidi seguir de balsa.
O percurso é guiado por uma linha de cor azul demarcada no chão e começa no Porto de Onomichi, em frente à Loja Giant. A alguns metros dali, encontra-se o terminal da balsa, que leva à Ilha de Mukaishima.
A balsa leva alguns minutos e logo na saída é possível encontrar a linha azul indicativa do caminho.

Após alguns quilômetros pedalando na Ilha de Mukaishima, avistei a primeira ponte: a Innoshima . Assim chamada por conectar-se com a Ilha de Innoshima. Sua extensão é de 1.270 metros.
Em uma área da Ilha de Mukaishima chamada Tachibana fica a entrada para a ciclovia do Innoshima Ohashi Bridge . Innoshima é famosa por ser a cidade com a expectativa de vida média mais longa no Japão. É um lugar maravilhosamente tranquilo, rodeado pelo mar calmo. 
Cheguei depois de subir um declive suave. A estrutura da ciclovia nessa ponte é diferente das outras que eu já havia visto. É uma ponte suspensa de dois andares: os carros passam em cima da ponte e os ciclistas usam a pista abaixo deles. São aproximadamente 41 metros acima da superfície do mar, enquanto os carros passam 9 metros acima. Uma sensação única, parece que você está pedalando dentro de um compartimento de carga gigante.

Ilha de Innoshima

Depois de atravessar a ponte cheguei à Ilha de Innoshima. Conhecida por suas laranjas hassaku (uma laranja japonesa do tamanho da grape fruit). Tambem, por ser a ilha original de uma família de piratas: os Murakami, que viveram no século XIV.
O castelo da família – Suigun Castle, é hoje um museu histórico.

Innoshima Suigun Castle

Em cada lado da Ilha Innoshima, uma sensação diferente. O lado oeste é uma área movimentada com ruas estreitas, ladeadas por casas e lojas. O norte apresenta a área descontraída da cidade velha de Shigei. No leste, é possível desfrutar de uma vista espetacular da Ponte Innoshima. E o Sul é uma grande área de construção naval. Continuei pedalando ao longo do mar por um tempo. Havia poucos carros e foi ótimo pedalar enquanto olhava para o mar.

Deixei a Ilha de Innoshima e segui para Ikuchijima.

Aproximadamente 11 km depois da Ponte de Innoshima, cheguei à Ponte Ikuchi (790 metros). Ela tem a ciclovia na mesma altura da autoestrada. Não é uma ponte suspensa, é estaiada.

Ilha Ikuchijima

Depois de alguns quilômetros percorridos , cheguei à Ilha Ikuchijima (ilha do limão). Ali os limões são cultivados em grande escala. Dizem que, por conta disso, mesmo no inverno as montanhas têm uma tonalidade amarela. Por lá é comum encontrar algumas lojas ao longo da ciclovia vendendo bolos de limão. Chegando na ilha, há a opção de seguir entre dois caminhos, norte ou sul. Ambos passam à beira-mar, com palmeiras e uma atmosfera tropical. Optei por seguir em direção ao norte.

 Segui pedalando até a Ponte Tatara Ohashi, a 12 km da anterior. Parece muito com o Ikuchi, mas mede exatamente o dobro de extensão, 1480 metros de comprimento. É uma ponte estaiada que liga a Prefeitura de Ehime e a Prefeitura de Hiroshima. Na época em que foi construída, era a maior ponte suspensa de cabos do mundo. Realmente fiquei impressionada com toda aquela estrutura.

Tatara Nakiryu

Um fato curioso: na ponte há uma placa com a inscrição “Tatara Nakiryu”. Nakiryu significa “dragão rugindo”. Eu havia ouvido a respeito quando visitei o Santuário Nikko Tosho-gu e o Templo Shokoku-ji de Kyoto. Nesses templos, há uma explanação e demonstração do “rugido do dragão”. No templo voce se posiciona de frente para o dragão desenhado no teto. A seguir bate palmas ou bate em alguns blocos de madeira, ai é possível ouvir o som ressoar no teto e no chão. É possível ouvir as múltiplas reverberações. 
Desde os tempos antigos , este fenômeno tem sido chamado de Nakiryu . A mesma coisa ocorre na Ponte Tatara Ohashi. Se bater palmas ali, estando de pé, abaixo da torre principal, você poderá ouvir os sons que ecoam subindo a torre. Claro, se não houver carros passando no momento. Experimentei, mas não ouvi. Foi tão divertido, acabei tentando muitas vezes! 
Eu , nunca imaginei atravessar os mares interiores japoneses através de pontes incríveis. Elas também são um ótimos lugares para observar as marés fortes deste Mar Interior, que fazem com que pareça um rio.

“Cyclist Sanctuary”.

Próximo à ilha Omishima, há um ponto de parada com o famoso monumento “Cyclist Sanctuary”.

Descendo a ciclovia e indo para a direita, pega-se a estrada principal e, para a esquerda, a rota 51 para Shimosaka. A rota 51 é uma estrada que corre ao longo da costa da Ilha de Omishima. Optei em seguir pela estrada principal. A ilha é conhecida por “Ilha dos Deuses”.

Nela fica um famoso santuário xintoísta chamado Oyamazumi-Jinja. O santuário que tem sido adorado como uma divindade do mar, das montanhas e guerras.

Há muitas árvores de cânfora de 2000 a 3000 anos perto do santuário e vale a pena uma visita. Ele também já foi um dos mais importantes do Japão para samurais.  Ele  abriga uma impressionante coleção de armas e armaduras. O que o torna uma espécie de Meca para pessoas interessadas nas  artes marciais.

Existem alguns museus em  Omishima. Entre eles  o Museu Toyo Ito de Arquitetura, o Museu Tokoro Omishima e o Museu Mãe e Criança Ken Iwata. Todos localizados em pontos turísticos ao longo do lado sudoeste da ilha. Eles são um pouco difíceis de visitar de bicicleta. O acesso é pelo o ferry de Imabari para o porto de Munagata. Então ficou só a vontade de os ter explorado.

De Omishima segui para a quarta ponte, de cerca de 7 km. Omishima foi a primeira ponte a ser construída sobre o Shimanami Kaido. Ligando Omishima a Hakatajima, a visão de ambas as ilhas começa a crescer após o término da ponte. A única ponte em arco ao longo de todo o percurso e a maior ponte em arco do Japão.

Hakatajima

A principal rota de ciclismo em Hakatajima é de apenas 3 km, uma pequena parte desta ilha. Por isso, não tive dúvidas e decidi pedalar pela costa; são menos de 20 km quase sempre planos. Pude ver algumas paisagens belíssimas e desfrutar da paz e tranquilidade da vida rural na ilha.

Hakata – Oshima

Avancei em direção à quinta ponte, apenas 2 km depois, Hakata-Oshima. O nome é dado pela conexão que possibilita entre as duas ilhas. Na verdade, há duas pontes: a Ponte Hakatabashi e a Ponte Oshima Ohashi.
Hakatabashi é uma ponte de viga de caixa que liga as ilhas de Hakatajima e Michikajima. E Oshima Ohashi é uma ponte suspensa que liga as ilhas Michikajima e Oshima. Elas formam uma estrutura interessante que une os dois tipos de pontes no ponto médio, a Ilha Michikajima. Nessa ponte, bicicletas, pedestres e motos compartilham a mesma pista. Após percorrer a ciclovia, segui pela rota 317.

Kurushima-Kaikyo

E após 14 Km atravessando a Ilha de Oshima, cheguei à última ponte. A maior, mais longa e mais espetacular: a Kurushima-Kaikyo, símbolo do Shimanami Kaido.
É a primeira ponte suspensa no mundo a unir três pontes. As Pontes Kurushima-Kaikyo Ohashi , a Kurushima-Kaikyo Ohashi e a Ponte Kurushima-Kaikyo Ohashi . Totalizando de 4.105 metros.
Mas com o vento contra parece o triplo. Há uma inclinação que aos olhos não parece existir, mas as pernas sentem. Admirar a beleza das ilhas Setouchi, 65 metros acima do nível do mar, como se fosse um pássaro, foi incrível!
Finalmente, cheguei à cidade de Imabari. Um paraíso das fontes termais, que parecia ideal para me recuperar do esforço. Ali descobri que muitos ciclistas começa o percurso partindo dali por causa da direção do vento e das encostas.

Imabari

Em Imabari há também uma hospedagem voltada para os ciclistas: o Cyclo No Ie. Fantástico!

Para alguns ciclistas 100 km percorridos pode parecer pouco . Mas, para mim, a rota superou todas as expectativas. E sim,  ela faz jus a todos os adjetivos recebidos. Foi uma experiência incrível!